Economia

Argentinos começam a dar sinais de cansaço com ‘terapia de choque fiscal’ de Milei

maio, 13, 2024 Postado porGabriel Malheiros

Semana202419

Desde que o autoproclamado presidente anarcocapitalista da Argentina, Javier Milei, lançou uma “terapia de choque econômico” cinco meses atrás, a aposentada Angélica Galiazzi tomou uma decisão que abalou sua identidade argentina: desistiu de comer carne bovina.Num país onde comer um bife é um modo de vida, a carne bovina ficou cara demais para sua pensão mensal de US$ 200. Assim como usar o transporte público e até comprar comprimidos para a pressão arterial e o colesterol.

“Estou muito estressada”, diz Galiazzi, 82, que agora compra fatias de carne de porco, mais barata, para servir durante as refeições por uma semana. “O que ganho de aposentadoria mal dá para comer.”

A revolução do livre mercado prometida por Milei quando assumiu o cargo em dezembro está provocando profundas dificuldades econômicas na Argentina. Quase 60% dos argentinos agora vivem na pobreza, número que era de 44% em dezembro, segundo a Universidade Católica.

Agências do governo foram fechadas, ao custo de milhares de empregos. A atividade no setor da construção despencou, pois as autoridades afirmam ter paralisado quase 90% das obras públicas. E o consumo de carne bovina é o menor em décadas – muito embora as autoridades afirmem que as exportações dessa carne se encontrem nos níveis mais altos desde 1967.

Milei diz que sua reforma econômica é necessária para restabelecer a prosperidade de uma nação falida, devastada pela inflação mais alta do mundo. Sua personalidade excêntrica e as soluções radicais despertaram grande interesse de bilionários como Elon Musk, Peter Thiel e Stanley Druckenmiller, o operador que disse à CNBC que comprou ações argentinas na esperança de ver uma eventual recuperação econômica.

“Pela primeira vez em 150 anos, estamos criando as condições para converter todos esses dons que Deus nos deu em uma promessa de prosperidade”, disse Milei recentemente.

As mudanças não seriam fáceis, como alertou o próprio presidente quando brandiu uma motosserra em comícios de campanha para ilustrar como iria atacar a inflação, cortando os tradicionalmente generosos gastos públicos em tudo, de subsídios energéticos a empresas estatais ineficientes.

Mas o governo e muitos economistas argentinos estão apostando que o pior já passou. A inflação de abril, que deve ser anunciada nesta terça-feira (14), deverá mostrar um aumento de menos de 10%, em comparação aos 25% de dezembro.

No primeiro trimestre, o governo registrou um superávit fiscal — o primeiro em 16 anos — ao parar a impressão desenfreada de dinheiro que estava alimentando a inflação. Isso levou o peso, que vinha em uma queda acentuada, a se estabilizar.

E embora as reservas do Banco Central continuem perigosamente baixas, o governo acumulou cerca de US$ 12 bilhões nos últimos meses, segundo o Instituto de Finanças Internacional (IIF, na sigla em inglês).

“Eu vejo uma luz no fim do túnel”, diz Claudio Loser, economista argentino do Centennial Group de Washington, uma consultoria voltada para os mercados emergentes.

Milei assumiu o cargo no ano passado, quando a Argentina enfrentava sua mais recente crise econômica. Incapaz de recorrer aos mercados internacionais, o governo anterior imprimiu dinheiro para cobrir seu déficit fiscal, alimentando a inflação à medida que o peso perdia 90% de seu valor.

Os controles cambiais e dos preços levaram à escassez de produtos básicos, como arroz e café, e as montadoras suspenderam a produção em razão da escassez de dólares necessários para importar insumos.

O impetuoso economista, que se descreve como libertário, reduziu os gastos primários do governo em 40% no primeiro trimestre deste ano, em grande parte cortando as transferências para as províncias, paralisando obras públicas e eliminando os aumentos de salários e pensões, em vez de indexá-los à inflação.

Essa tática, conhecida localmente como “liquefação”, é mais difícil de ser mantida à medida que a inflação cede, afirmam economistas. Ela também atinge especialmente os idosos. Como resultado, o governo concordou em começar agora a aumentar os valores mensais de pensões para acompanhar a inflação.

“A estratégia de liquefação atingiu seu limite”, diz Hector Torres, pesquisador sênior do Centre for International Governation Inovation do Canadá e ex-diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI). “Ela não é sustentável.”

Sem mudanças mais amplas para estimular a economia, os recentes superávits fiscais do governo serão insustentáveis, segundo economistas. Mas Milei ainda precisa obter uma vitória legislativa para medidas que economistas afirmam serem fundamentais para realmente recuperar uma economia sufocada por impostos elevados e regulamentações governamentais.

Milei espera que o Senado aprove, nas próximas semanas, um projeto de lei com cerca de 230 artigos que privatizaria algumas companhias estatais, flexibilizaria as rígidas regulamentações trabalhistas e aumentaria a receita do governo ao restabelecer o imposto de renda, que foi eliminado no ano passado.

Esse projeto de lei é uma versão simplificada da legislação originalmente proposta pelo governo, que tinha cerca de 660 artigos e enfrentou forte oposição no Congresso, onde Milei tem pouco apoio.

O governo espera que a aprovação da lei sinalize aos investidores que Milei é capaz de aprovar reformas amigáveis aos negócios, trabalhando com uma oposição que ele há muito classifica de “casta política”.

“Isso é fundamental”, diz Malcolm Dorson, gerente sênior de portfólio da Global X, uma provedora de fundos negociados em bolsas de valores (ETFs) de Nova York que tem cerca de US$ 318 milhões investidos na Argentina. “O que está sendo testado é sua capacidade de negociar e formar alianças com outros partidos.”

Uma recuperação econômica também exigirá suspender eventualmente um sistema complicado de controles cambiais implementado pelo governo anterior, de esquerda. Embora esses controles desencorajem os investimentos, autoridades afirmam que ainda não podem acabar com eles, pois não têm reservas suficientes para atender a demanda por dólares.

“Eles sabem que a remoção dos controles liberaria essa enorme demanda reprimida por dólares”, diz Sergi Lanau, que monitora de perto a Argentina na consultoria Oxford Economics, de Londres. “Ele simplesmente não pode fazer isso.”

As autoridades disseram que precisam de outros US$ 15 bilhões em reservas para suspender os controles. Alguns desses recursos poderiam vir da próxima safra de soja do país, uma das principais fontes de exportação.

Mas economistas afirmam que a Argentina provavelmente precisará recorrer novamente ao FMI para obter novos recursos, o que poderá ser difícil de conseguir, já que o país recebeu um enorme socorro financeiro poucos anos atrás. A Argentina deve cerca de US$ 44 bilhões para o FMI, decorrentes da crise cambial de 2018.

Milei ainda tem o apoio da maioria dos argentinos, segundo apontam as pesquisas, mas a confiança no governo começa a cair à medida que a população enfrenta a recessão.

Carolina Segovia costumava receber alimentos para a sua cozinha comunitária do agora fechado Ministério do Desenvolvimento Social, cuja sede ficava em um prédio com um mural de Evita Perón, a primeira-dama da década de 50 cujos gastos sociais definiram décadas de políticas peronistas.

Agora, Segovia vende roupas usadas para comprar alimentos. Ela pode conseguir cerca de 50 centavos por uma camiseta. Um paletó sai por US$ 5. Jeans, por US$ 2. Se ela vende o suficiente, pode comprar alguns sacos de batata e alguns condimentos. “Já havia fome antes, mas agora há mais”, diz ela.

“As pessoas estão morrendo de fome”

Até mesmo alguns apoiadores de Milei estão ficando cansados. Gabriel Pellizzon, o prefeito de Los Surgentes, uma cidade no centro agrícola conservador de Córdoba, diz que a maioria das pessoas ali ainda apoia as mudanças de Milei, mesmo tendo dificuldades para pagar as contas mais altas dos serviços públicos. Os moradores locais, diz ele, agora comem hambúrgueres de frango, em vez dos hambúrgueres de carne bovina, mais caros.

Mas ele quer que o governo elimine os impostos sobre as exportações de soja, uma importante fonte de receitas para o Estado, que agricultores há muito afirmam que sufocam sua produção. Ele também não se importaria se Milei amenizasse os cortes dos gastos públicos.

“A sociedade ainda o apoia. Mas eu diria para ele parar um pouco, porque as pessoas estão morrendo de fome”, afirma Pellizzon.

Milei disse que suas medidas em breve resultarão em um país rico em agricultura, gás natural e minerais como o lítio. “Você quer saber como a economia vai crescer?”, disse ele em outro discurso recente. “Ela vai subir como o peido de um mergulhador.”

 

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