Regras de Comércio

Comissário europeu vê ‘janela’ para acordo entre UE e Mercosul

out, 25, 2024 Postado porGabriel Malheiros

Semana202442

União Europeia (UE) e Mercosul têm “uma janela de oportunidade para encerrar as negociações” do acordo de livre comércio até o fim do ano, afirmou o comissário europeu para o Comércio, Valdis Dombrovskis, em entrevista Valor.

Ex-primeiro ministro da Letônia, Dombrovskis é a autoridade europeia que está à frente das negociações. Ele também acumula a função de vice-presidente executivo da Comissão Europeia, e se reuniu na quarta-feira, em Brasília, com o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, para tratar do tema.

Após o encontro, reconheceu que há desafios, principalmente a tradicional oposição dos agricultores da Europa e a questão ambiental, mas destacou que há saídas possíveis sobre a mesa. Nesse sentido, a adoção de “medidas compensatórias”, nos moldes de um fundo voltado para agricultores possivelmente prejudicados, é uma possibilidade, caso o acordo crie “perturbações” no mercado da Europa. Mas, mesmo assim, Dombrovskis não acredita que tais medidas serão necessárias.

Caso seja concluído, o acordo ainda precisará passar por outras etapas, como a análise das novas regras pelo Conselho Europeu – as negociações para o acordo tiveram início em 1999.

Fora da União Europeia e do Mercosul, o comissário afirma que as elevações das tarifas de importação propostas pelo ex-presidente americano e novamente candidato, Donald Trump, são um ponto de atenção. “Estamos prontos para defender nossos interesses econômicos, se for necessário”, diz. Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

Valor: É possível concluir as negociações do acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul até o fim do ano?

Valdis Dombrovskis: Realmente, acreditamos que há uma janela de oportunidade para encerrar as negociações até o fim do ano. Claro que ainda há assuntos que precisamos discutir e a respeito dos quais precisamos concordar, além de elementos adicionais que estamos debatendo, como o instrumento de sustentabilidade focado no desmatamento [espécie de documento que reforça o combate ao desmatamento]. As regras do Acordo de Paris também são essenciais. São elementos para reforçar a sustentabilidade presente no acordo. Também há temas que estamos discutindo na frente econômica, mas temos progredido, e é possível concluir [as negociações].

Valor: Como lidar com a oposição francesa e dos agricultores europeus? A adoção de um fundo para compensá-los é uma possibilidade?

Dombrovskis: O acordo é basicamente o que concordamos em 2019 [quando ambas as partes chegaram a uma espécie de acordo inicial]. Mas houve dificuldades para avançar com a ratificação, com muitas críticas. Uma estava ligada a políticas adotadas no governo [do ex-presidente Jair] Bolsonaro], permitindo que o desmatamento continuasse. Foi aí que surgiu a ideia do instrumento adicional de sustentabilidade. Houve um bom avanço no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O desmatamento já caiu pela metade e há uma meta [estabelecida pelo governo brasileiro com a Organização das Nações Unidas] de alcançar o desmatamento zero em 2030. Outra crítica estava ligada ao acesso [do Mercosul] ao mercado agrícola [europeu]. Com a UE adotando uma postura cautelosa para alcançar um equilíbrio entre a expansão do acesso do Mercosul e os interesses dos nossos agricultores, o acordo não criará perturbações. Mas, se houver necessidade, essas perturbações poderão ser endereçadas ou compensadas.

Valor: De que maneira o contexto geopolítico afeta as negociações?

Dombrovskis: Muitos membros da UE querem a conclusão das negociações. Há proponentes fortes, como Espanha e Alemanha, mas também outros países [que querem a conclusão]. O debate não é fácil, porque há oposição. Por isso, é importante que a gente comunique os benefícios econômicos que o acordo pode destravar. Também é um acordo geopolítico importante, porque aproxima parceiros e regiões com pensamentos semelhantes. Especialmente nesses tempos turbulentos, é necessário trabalhar de maneira conjunta e cooperar.

Valor: A oposição da indústria brasileiras às regras de compras públicas é um problema?

Dombrovskis: Há algumas questões industriais que ainda estamos discutindo, como as compras públicas. Mas estamos bastante próximos de concluir também essas negociações. Existe um engajamento pragmático de ambos os lados. As diferenças que estamos debatendo são passíveis de solução.

Valor: O possível adiamento da nova legislação antidesmatamento da Europa pode impactar de alguma maneira o acordo?

Dombrovskis: O que temos ouvido dos nossos parceiros ao redor do mundo, inclusive do Brasil, é que o adiamento por um ano daria mais tempo para eles se prepararem [para a nova legislação]. Estamos lidando com a questão do desmatamento no contexto do acordo. Há o novo instrumento de sustentabilidade, por exemplo. Então não espero que o adiamento tenha impacto significativo sobre as negociações.

Valor: O governo brasileiro considera a nova legislação antidesmatamento “unilateral e coercitiva”. Como a UE responde às críticas?

Dombrovskis: O comércio é frequentemente um objeto difícil de discussões públicas. Mas estamos endereçando essas críticas. O objetivo da legislação antidesmatamento é garantir que a demanda da UE não leve ao desmatamento em outras partes do mundo. O que ela faz é limitar a importação de determinadas commodities agrícolas vindas de certas áreas recentemente desmatadas, sem afetar as importações vindas de áreas agrícolas tradicionais. Além disso, em termos de políticas públicas contra o desmatamento, estamos alinhados com o Brasil. Olhando de maneira mais ampla, estamos na mesma página, e tenho certeza que encontraremos formas de alinhar os nossos diferentes instrumentos. Claro que há outras coisas que estamos fazendo em termos comerciais, que também não contribuem para as mudanças climáticas ou a degradação ambiental. É por isso que todos os acordos modernos da UE têm capítulos ambiciosos comerciais ou de desenvolvimento, além de questões trabalhistas.

Valor: Qual o melhor caminho para reformar a Organização Mundial do Comércio (OMC)? O tema já foi discutido com o Brasil?

Dombrovskis: Tivemos discussões com autoridades brasileiras, e será um assunto amanhã [quinta-feira] na reunião ministerial sobre comércio e investimentos do G20 [em Brasília]. Sobre a OMC, para a UE é importante antes de tudo preservar regras livres e justas para o comércio internacional. Ao mesmo tempo, a OMC está em crise. O sistema de solução de controvérsias, por exemplo, não está funcionando. Há uma série de questões que precisamos endereçar. Mas a OMC continuará a exercer um papel importante.

Valor: Por quê?

Dombrovskis: A UE tem a rede mais abrangente de acordos de livre-comércio do mundo. Ainda assim, mais da metade do nosso comércio é realizado por meio da OMC. Além disso, é importante observar que, apesar da tendência atual de fragmentação comercial, com muitos países introduzindo medidas de proteção, o princípio de nação mais favorecida [espécie de regra que busca evitar discriminações nas relações comerciais internacionais] é responsável por boa parte da resiliência do sistema internacional de comércio. Estamos comprometidos com a reforma e trabalhando de perto com parceiros que pensam de maneira semelhante.

Valor: Como a eleição presidencial americana poderá afetar essas discussões?

Dombrovskis: É difícil especular neste momento, mas vemos o ex-presidente Donald Trump anunciado que implantará tarifas [de importação], com a possibilidade de guerras comerciais. Isso certamente representa um risco para o sistema internacional de comércio. Durante o primeiro mandato de Trump, nós vimos a implantação de tarifas de importação direcionadas a aço e alumínio, e a UE precisando adotar medidas para contrabalançar [os aumentos de tarifas realizados pelo governo americano]. Estamos prontos para defender nossos interesses econômicos, se for necessário. Há certas declarações de um candidato presidencial que causam preocupação.

Valor: O governo brasileiro está considerando entrar para a Nova Rota da Seda da China, também chamada de Iniciativa do Cinturão e Rota. Qual a avaliação do senhor?

Dombrovskis: É claro que os países são livres para escolher [seus parceiros] segundo as suas orientações geopolíticas e a cooperação com seus parceiros. Não creio que haja contradição direta entre a conclusão do acordo entre UE e Mercosul e o Brasil se juntar ou não à Rota da Seda. A UE e o Brasil são países que pensam de maneira semelhante, então continuaremos a nossa cooperação.

Valor: O Brasil é um mercado crescente para os carros produzidos pela China. O que é possível aprender com a experiência europeia a respeito do tema?

Dombrovskis: O Brasil está dando passos, porque já vem elevando a tarifa de importação para veículos elétricos. Em relação à UE, nós tínhamos a mesma preocupação. Víamos as marcas chinesas ganhando mercado rapidamente. Por isso, no ano passado lançamos investigações contra subsídios [promovidos pela China], porque vimos que esse espaço no mercado vinha sendo conquistado por preços artificialmente baixos. Encontramos evidências suficientes de que havia subsídios públicos [irregulares], e os Estados-membros apoiaram a introdução de novas tarifas. Claro que o nosso objetivo não é implantar tarifas simplesmente por implantá-las. Portanto, estamos negociando com a China outras soluções possíveis. Temos sido transparentes, afirmando que a nossa meta não é fechar o mercado europeu para produtores chineses, mas garantir que a competição seja realizada em condições iguais.
Valor: Há um crescimento dos investimentos estrangeiros no Brasil e em outros países para a obtenção de minerais críticos…

Dombrovskis: Isso com certeza é um assunto importante agora, porque estamos em uma transição verde e digital das economias. Há alguns anos, quando começou a invadir a Ucrânia, a Rússia tentou usar o seu gás natural como arma de chantagem e manipulação [contra Europa]. Não funcionou, porque fizemos alguns ajustes de infraestrutura para que recebêssemos o gás de outros locais. Mas isso nos ensinou uma lição importante. Atualmente, mais de 19% dos nossos minerais críticos vêm da China. É por isso que estamos buscando diversificar as nossas fontes de materiais brutos e formas de cooperação mutuamente benéficas, ajudando países não apenas na extração [dos minerais], mas também no processamento, para que eles adicionem valor aos recursos que já têm. Há algumas iniciativas que lançaremos nesse sentido, como o Fórum para Parceria e Segurança de Minerais. O tema também está sendo discutido com o Brasil, que é um país especialmente rico [em minerais críticos].

Valor: Nesta semana houve a reunião de cúpula do Brics. Qual a opinião do senhor sobre a atuação do grupo?

Dombrovskis: Como eu disse, respeitamos a soberania dos demais países e as iniciativas para se juntarem em diferentes grupos. Certamente temos nossas questões com a Rússia, como discutimos. A China, que é um membro dominante do Brics, tem se posicionado de maneira ambígua. Sem oferecer apoio direto à Rússia, mas, ao mesmo tempo, itens que têm sido encontrados no armamento usado pelos russos estão indo por meio da China. São componentes [de armas] ocidentais, dos Estados Unidos e da Europa. Estamos tentando garantir que esses componentes não cheguem à Rússia. Temos analisado esses canais e conversado com esses países, mas vemos dificuldades na Ásia Central, na Turquia, nos Emirados Árabes, para citar alguns exemplos. Também temos conversado com a China, mas infelizmente vemos que esses fluxos continuam.

Por Fernando Exman e Estevão Taiar

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