‘Ferro-velho marítimo’: Descarte ilegal de navios movimenta mercado lucrativo ao custo de mortes e poluição no sul da Ásia
jan, 23, 2024 Postado porSylvia SchandertSemana202404
A cada 12 meses, cerca de 500 a 700 navios de grande porte atingem o limite de sua vida útil e precisam passar por descarte em todo o mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho. Desse total, menos de 10% recebem o tratamento correto: são milhões de toneladas de sucata marítima contaminada com substâncias tóxicas que têm como destino principal a costa sul da Ásia. É nas “praias de encalhe” de Bangladesh, Índia e Paquistão, longe de qualquer infraestrutura adequada e de fiscalização, que milhares de trabalhadores não qualificados, incluindo crianças, realizam o desmanche das embarcações — considerado um dos trabalhos mais perigosos pela OIT. De acordo com a ONG Shipbreaking Platform, que reúne 17 organizações de 10 países, ao menos 447 pessoas morreram em instalações desse tipo na região desde 2009.
Descarte de navios
Ao menos 443 navios comerciais foram vendidos para estaleiros de descarte em 2022. Embarcações desse tipo são construídas para operar durante 20 a 25 anos, em média. Depois desse período, elas precisam ser descartadas, o que, geralmente, é visto por seus proprietários como uma fonte de renda, já que é possível vender a estrutura obsoleta para uma empresa de desmanche — uma espécie de “ferro velho marítimo”. O problema é que o valor da sucata não é determinado apenas pela quantidade de aço presente no casco, mas também pela porcentagem de resíduos tóxicos que ele contém.
Substâncias como amianto, mercúrio, metais pesados, óleo e tintas aumentam os custos da reciclagem, o que reduz consideravelmente os preços de venda e, em casos específicos, podem até gerar despesas em vez de lucro para o proprietário, explica Nicola Mulinaris, consultor sênior de comunicação e política da Shipbreaking Platform. Assim, a maior parte dos operadores opta pela utilização de intermediários nas transações, contornando leis internacionais e de seus próprios países para garantir um faturamento maior.
— Apenas 5% a 10% das embarcações em final de vida útil são destinadas à reciclagem limpa e segura em estaleiros certificados na Europa, Turquia e Estados Unidos — afirma Mulinaris.
Conhecidos como “cash buyers”, os intermediários são entidades registradas em paraísos fiscais ou Estados onde as regras de controle marítimo e ambiental costumam ser desrespeitadas. Quatro marcas controlam 80% do mercado, que se utiliza de empresas de fachada em países como as Ilhas Virgens Britânicas, no Caribe, e Comores, na África, para ocultar a propriedade dos navios, fugindo assim da responsabilização legal.
DINHEIRO SUJO
Proprietários de navios da Ásia e da Europa estão no topo da lista dos maiores exportadores de barcos para desmonte irregular no sul asiático. Em 2022, a Índia desmanchou 127 embarcações em estaleiros de Alang, na costa oeste; e as empresas de desmonte de Chittagong, na costa sudeste de Bangladesh, e as de Gadani, no litoral sul do Paquistão, reciclaram, respectivamente 122 e 43 unidades.
Enquanto uma empresa de reciclagem certificada paga em média US$ 100 por tonelada de aço dos navios descomissionados, os “compradores à vista” chegam a oferecer US$ 500 pela mesma quantidade. Isso só é possível porque, ao reduzir os custos com segurança, mão de obra e proteções ambientais, muitos estaleiros do sul da Ásia se oferecem para comprar embarcações obsoletas por mais que o dobro do preço de seus concorrentes, diz Julia Bleckner, pesquisadora sênior da Human Rights Watch.
— Mas esse lucro vem acompanhado de um grande custo humanitário e ambiental para a região — alerta.
O desmanche de navios é um setor extremamente lucrativo para Bangladesh, contribuindo com cerca de US$ 2 bilhões para a sua economia. Mas o país não tem nenhuma instalação de processamento de resíduos tóxicos. Também não há nenhum tipo de segurança: homens adultos e menores de idade escalam as embarcações sem cintos de proteção e utilizam suas próprias meias como luvas para proteger as mãos ao manusear objetos quentes ou cortantes, relata Bleckner. Nos pés, calçam chinelos de dedo. Além disso, muitas vezes, os navios atracam sem passar por uma inspeção adequada, e restos de combustível armazenados em seu interior acabam causando explosões durante o desmanche, afirma a especialista.
Em 2022, ao menos 10 trabalhadores perderam a vida e 33 ficaram feridos ao desmontar embarcações na praia de Chattogram, em Bangladesh, segundo a ShipBreaking Platform. Fontes locais também registraram três mortes em Alang, na Índia, e três feridos em Gadani, no Paquistão. Alguns desses acidentes ocorreram a bordo de embarcações pertencentes a empresas de navegação conhecidas, como Berge Bulk, Sinokor e Winson Oil.
Além de causar um enorme impacto na saúde dos trabalhadores, o desmanche de navios é considerado um setor altamente poluente. Grandes quantidades de carcinógenos e substâncias tóxicas como mercúrio, chumbo e ácido sulfúrico intoxicam os trabalhadores do setor e também atingem comunidades vizinhas, devido à contaminação do solo e das águas costeiras, já que maioria dos estaleiros não tem sistemas ou instalações de gerenciamento de resíduos para evitar a poluição, afirmam especialistas.
DE QUEM É A CULPA?
De acordo com a OIT, um navio de tamanho médio contém até 7 toneladas de amianto, que geralmente é vendido em comunidades locais após o desmanche. Amplamente utilizado como isolante térmico ao longo de décadas, o material hoje é banido em mais de 60 países, incluindo o Brasil, já que a inalação prolongada de suas fibras pode provocar doenças graves como o câncer de pulmão, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
— Os navios que estão sendo descomissionados hoje foram construídos anos atrás, quando não havia ainda uma preocupação ambiental com a destinação de sua estrutura — explica o oceanógrafo David Zee, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. — Eles sequer foram pensados para ser desmontados.
O Brasil teve seu próprio escândalo de descomissionamento há cerca de um ano. Em fevereiro de 2023, a Marinha optou por afundar o porta-aviões São Paulo após meses de impasse. A embarcação havia sido enviada para desmonte na Turquia, mas o estaleiro responsável se recusou a recebê-la depois de serem detectadas 10 toneladas de amianto e outros materiais tóxicos em seu casco. Proibido de entrar no Brasil e no exterior, o navio foi afundado a 350 km da costa de Pernambuco, uma decisão amplamente criticada por ambientalistas. Na ocasião, a Marinha disse em nota que o procedimento “foi conduzido com as necessárias competências técnicas e segurança”.
A Organização Marítima Internacional (IMO) é a entidade das Nações Unidas responsável pela regulamentação e aplicação dos padrões internacionais de transporte marítimo, incluindo proteções ambientais e trabalhistas. Críticos, porém, acusam o órgão de ser controlado por empresários do setor, que limitam sua capacidade de atuar como um regulador eficaz, já que os países com mais bandeiras registradas (incluindo as de conveniência) têm mais peso nas votações. Procurada, a OMI respondeu que “quaisquer penalidades relacionadas a instrumentos de tratados internacionais estão sujeitas às leis nacionais”.
Fonte: O Globo
Clique aqui para ler o texto original: https://oglobo.globo.com/mundo/especial/ferro-velho-maritimo-descarte-ilegal-de-navios-movimenta-mercado-lucrativo-ao-custo-de-mortes-e-poluicao-no-sul-da-asia.ghtml
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