Os navios autônomos e os novos desafios da responsabilidade civil
jan, 21, 2022 Postado porSylvia SchandertSemana202203
Em 1620, um navio chamado Mayflower zarpou da cidade de Plymouth, na Inglaterra, transportando 102 peregrinos em direção às terras que, futuramente, dariam origem aos Estados Unidos da América. Em razão de problemas com a embarcação, os peregrinos tiveram que retornar ao porto de origem por duas vezes. Efetuados os reparos no navio, seguiram viagem e, naquele mesmo ano, fundaram a cidade de Plymouth, desta vez em solo norte-americano, mais precisamente no atual Estado de Massachusetts.
Passados quatrocentos anos, um novo Mayflower partiu do mesmo porto da cidade de Plymouth na Inglaterra para refazer a mesma aventura marítima. Só que dessa vez o Mayflower contou com uma novidade inimaginável para os peregrinos ingleses: a embarcação não levou passageiros nem tripulação, navegando de forma autônoma, por meio de inteligência artificial, equipado por um software e sensores de localização por satélite. Desnecessário dizer que o Mayflower moderno também não é feito de madeira, mas de alumínio e não possui velas como o original, mas sim baterias alimentadas por energia solar.
Por uma coincidência do destino, assim como o seu predecessor, o Mayflower autônomo também enfrentou problemas técnicos, certamente mais sofisticados do que aqueles que atrasaram a viagem dos peregrinos ingleses, mas que também obrigaram a embarcação a retornar à Inglaterra para realização de reparos. Independentemente desse contratempo, a partida de um navio autônomo, sem tripulação e passageiros, dirigido por inteligência artificial representa um marco na história da navegação, indicando sinais de novos tempos na indústria marítima e também novos desafios não apenas tecnológicos.
O desenvolvimento de navios autônomos, que são aqueles dirigidos por inteligência artificial e sem intervenção humana, ou quando menos de embarcações não-tripuladas, que são controladas remotamente por um operador, parece ser uma tendência irrefreável. A Noruega vem despontando nessas iniciativas e, no final do ano passado, apresentou ao mundo um porta-contêiner (Yara Birkeland) com propulsor totalmente elétrico, sem tripulantes, que navega por meio de monitoramento à distância. Embora ainda em estágio inicial, o experimento mostra que, em futuro não muito distante, os navios de carga, assim como já está ocorrendo em relação aos automóveis, poderão ser completamente transformados.
As possibilidades de aplicação das novas tecnologias são incontáveis. Na indústria do petróleo, as embarcações não-tripuladas já são empregadas na detecção de vazamentos de óleo e em operações arriscadas em águas profundas. Na área militar, assim como já ocorre com aviões e drones, navios sem tripulantes e movidos a energia elétrica tendem a assumir alta relevância estratégica. Os Estados Unidos, aliás, já possuem um navio militar desse tipo, o SeaHunter, ainda em estágio experimental. Por fim, a inteligência artificial poderá, em tese, reduzir drasticamente os acidentes da navegação, causados em sua grande maioria por falha humana. Tudo isso, evidentemente, a depender de quão velozes serão os avanços tecnológicos na área.
No campo jurídico, os desafios são também bastante relevantes e variados. Conforme divulgado na revista Portos e Navios (25/3/2020), já se discute no Brasil a criação de um arcabouço legal mínimo que forneça regulamentação essencial para a operação de navios autônomos em águas jurisdicionais brasileiras. O objetivo é evitar que haja barreiras regulatórias desnecessárias a esse tipo de embarcação, conferindo a necessária segurança jurídica para que o país possa receber esses navios futuramente.
Já há também um “Regulamento Provisório para Operação de Embarcação Autônoma”, aprovado pela Diretoria de Portos e Costas (Portaria 59/2020, de 19/02/2020).[1] Interessante notar a previsão de que esse Regulamento se aplica apenas a embarcações autônomas com comprimento total menor ou igual a 12 metros, capazes de operar ou serem operadas de forma remota ou autônoma, e que embarcações autônomas de tamanho superior a 12 metros não estão autorizadas a operar em águas jurisdicionais brasileiras. Por fim, vale também mencionar, que o Comitê de Segurança Marítima da Organização Marítima Internacional (IMO) possui, desde 2017, grupo de estudo para regulamentação do que convencionou chamar de Maritime Autonomous Surface Shipping ou simplesmente MASS, visando normatizar a interação dos navios autônomos com embarcações convencionais.
Os aspectos a serem regulados são os mais variados. O primeiro deles possivelmente relacionado à obtenção pelas empresas interessadas de autorização para operação dessas embarcações em águas jurisdicionais brasileiras. Em seguida, e mais relevante, os aspectos relacionados à própria segurança da navegação. Por mais avançada que seja a tecnologia empregada nesses navios, parece impossível afastar completamente o risco de acidentes, devendo se prever, por exemplo, quem será responsabilizado em caso de sua ocorrência, lembrando que a embarcação autônoma, em princípio, não contará com um comandante a bordo ou sequer um prático nas manobras de atracação.
A ocorrência de falhas no equipamento da embarcação e no sistema de navegação, erros de software, problemas de comunicação ou com os sensores de direcionamento, a relação com navios convencionais e até mesmo ataques cibernéticos, dentre outros possíveis riscos, se não impedirão o desenvolvimento dos navios autônomos, deverão ser previstos e devidamente regulados pelos órgãos responsáveis. Adaptações nas legislações já existentes e nas convenções anteriormente ratificadas poderão ser necessárias para prever o tratamento jurídico dessas novas situações e riscos correlatos.
As responsabilidades administrativa, civil, criminal e até mesmo ambiental precisarão ser igualmente debatidas e repensadas. Se o navio será controlado à distância ou até mesmo tomará decisões relacionadas à navegação por meio de inteligência artificial, não havendo tripulação a bordo, a própria possibilidade e efetividade da responsabilização administrativa, civil, criminal e ambiental em caso de acidentes precisará ser reavaliada. Do mesmo modo, questões relevantes para o contencioso marítimo, como o arresto de embarcações, demurrage, abalroamentos, dentre outras, também necessitarão ser, de alguma forma, adequadas à operação de um navio autônomo e/ou sem tripulação, se a tecnologia permitir que isso venha a se tornar uma realidade.
A questão se torna mais complexa, por exemplo, quando for necessário investigar quem será a pessoa (física ou jurídica) responsável pelo comportamento errático de uma embarcação dirigida por inteligência artificial. Afinal, a cadeia de produção e operação do navio será necessariamente complexa, envolvendo o construtor, o armador, o desenvolvedor do software e diversos outros agentes. Assim, será necessário avaliar caso a caso, bem como observar eventual evolução legislativa sobre o assunto.
Nesse aspecto, como já vem ocorrendo na Europa em relação ao tema da robótica, surge também a discussão relacionada à existência de seguros que prevejam ressarcimento de danos causados a terceiros em razão da operação dos navios autônomos, o que não significa necessariamente a imposição de novos seguros obrigatórios, mas possivelmente a adequação dos contratos e cláusulas já existentes para prever também a modalidade de navegação autônoma ou sem tripulação e os riscos a ela inerentes. Da mesma forma, os clubes de P&I também poderão ter que ajustar ou complementar os termos que regem a relação entre seus membros.
Todos esses avanços representam desafios e novas fronteiras para a responsabilidade civil em geral, que também evolui e se desenvolve de acordo com o surgimento e implementação das novas tecnologias.
Fonte: Migalhas
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