Pilar do comércio internacional, o direito à navegação está sob ataque
fev, 07, 2024 Postado porSylvia SchandertSemana202406
O comércio internacional depende de uma regra tão antiga que quase nenhuma pessoa viva consegue lembrar-se de como eram os tempos antes dela: a de que os navios de qualquer país podem navegar em alto-mar. De uma hora para outra, esse pilar da ordem internacional passou a mostrar sinais de fadiga.
No Mar Vermelho, os rebeldes houthi têm atacado navios de carga, o que levou as tarifas de frete a quadruplicar e criou o precedente de que os navios americanos não são bem-vindos em uma das rotas de transporte mais vitais do mundo. A invasão da Ucrânia pela Rússia transformou o Mar Negro em um corredor delimitado por navios de guerra e minas, pelo qual passam navios graneleiros carregados de cereais sob o frágil aval de dois Estados em guerra.
Perto do Chifre da África e no Estreito de Malaca, piratas que até então pareciam controlados ressurgiram, afetando o tráfego marítimo. No Mar do Sul da China, Pequim declarou controle soberano sobre partes que há muito eram águas internacionais, ao mesmo tempo em que seu empenho em reunir Taiwan ao continente gera dúvidas quanto ao futuro do tráfego pelo Estreito de Taiwan.
“Durante toda a minha longa carreira […] nunca vi uma competição tão intensa nos oceanos do mundo”, disse James Stavridis, almirante da reserva dos EUA e ex-comandante supremo aliado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental). Ele escreveu um doutorado sobre o Tratado do Direito do Mar da Nações Unidas.
Os oceanos abertos permitiram à economia mundial emergir dos escombros de duas guerras mundiais. A liberdade para todos os navios porta-contêineres transportarem mercadorias em segurança em alto-mar ajudou a tirar a China da pobreza, transformou os EUA em um país de consumidores de classe média e consolidou o dólar como moeda de reserva mundial. Até o século 20, as nações comerciantes competiam via derramamento de sangue pelo direito de enviar mercadorias a portos estrangeiros; hoje, competem via preço e qualidade.
Mais de 80% das mercadorias mundiais são transportadas por navios, segundo a ONU. Até pouco tempo, as marinhas mais poderosas do mundo cooperavam para dar segurança nos mares. Em 2008, quando piratas somalis apreenderam dois navios chineses, Pequim enviou navios de guerra para ajudar os EUA a patrulhar o Chifre da África. Após a Guerra Fria, a Rússia se uniu às forças americanas para limpar lixo nuclear do Mar Ártico, antes que o derretimento do gelo abrisse novas rotas de navegação. Hoje, há poucas chances dessas três potências mundiais virem a se unir em torno de algum objetivo comum.
Os EUA ainda podem contar com aliados na Europa ou no Japão, cujas marinhas em outros tempos costumavam cruzar o planeta. Mas hoje eles possuem poucos navios de guerra ou pessoal experimentado que possam ser mobilizados em uma crise: a Marinha britânica tem menos marinheiros do que na época da Guerra Revolucionária dos EUA há 250 anos, quando sua população total era cerca de 15% da atual. A Marinha dos EUA, deixada de escanteio durante décadas de campanhas americanas contra o terrorismo, está sobrecarregada, garantindo a segurança não só de rotas de navegação, mas também cabos de dados submarinos e gasodutos que se tornaram igualmente importantes para a produção econômica.
O resultado: os outrora calmos oceanos voltaram ao centro das atenções. A série interligada de crises de segurança marítima da Europa ao Leste da Ásia deixa no ar uma questão preocupante, segundo analistas, autoridades e seguradoras dos EUA e da Europa: até que ponto a liberdade de navegação é uma anomalia histórica, com poucas chances de continuidade?
“É muito preocupante”, diz Kajsa Ollongren, ministra da Defesa da Holanda. A liberdade de navegação “é uma questão de princípios”.
Durante grande parte da história marítima, desde Cristóvão Colombo até os dias de hoje, piratas, corsários e as marinhas mais poderosas definiam as regras sobre quais navios podiam navegar e onde – impostas dentro do alcance de canhões dos navios de guerra que rondavam os mares.
O conceito alternativo – “liberdade dos mares” – remonta aos anos 1600 e sustenta que navios de qualquer nação deveriam ser autorizados a viajar no mar aberto. Mas isso só se materializou após a Marinha dos EUA sair vitoriosa sobre o Japão Imperial em 1945.
Na época, a Marinha dos EUA contava com cerca de 7.000 navios – e a classe política estava recheada de ex-fuzileiros navais e marinheiros – e se algum adversário estrangeiro tivesse uma visão diferente de como os mares deveriam funcionar, carecia dos navios de guerra para impô-la.
Hoje, a Marinha dos EUA consegue reunir menos de 300 navios e a maior frota do mundo pertence a Pequim, que está reforçando sua reivindicação unilateral sobre o imenso Mar do Sul da China, por meio da criação e fortificação de ilhas artificiais.
Stavridis chamou isso de “uma reivindicação absurda rejeitada pelos tribunais internacionais”, mas previu que a China vai continuar “e desafiar qualquer um que queira proceder com a liberdade de navegação”.
Governos da Europa à Ásia, que se tornaram prósperos e acostumados à segurança nos mares, querem manter abertos os pontos marítimos de afunilamento, em especial o Canal de Suez, o Estreito de Taiwan e o Chifre da África. Mas não vêm separando recursos para colocar isso em prática, disse Jacques Vandermeiren, executivo-chefe do Porto de Antuérpia-Bruges, o segundo maior da Europa.
“Quem está garantindo o livre comércio no mundo hoje?”, disse Vandermeiren. “Os EUA? Uma coalizão global? Quem vai organizar isso e quem vai pagar por isso?”
Ao longo da história, só 80 anos separam o presente de um passado em que a maioria dos produtos industrializados era transportada por terra, e um navio apenas era tão seguro quanto o Estado que o protegia. Menos de 500 milhões de toneladas de carga seca cruzavam os mares a cada ano na década de 1950. O mundo estava pontilhado de pequenos fabricantes que atendiam aos compradores locais.
Hoje, os porta-contêineres transportam uma tonelagem 23 vezes maior, integrando uma economia global de grandes conglomerados têm como alvo qualquer cliente na Terra que possa oferecer o maior lucro, e mais rápido. Essa integração reduziu custos e permitiu, por exemplo, à Ikea vender sofás idênticos com baixo custo em 59 países e ao McDonald’s fritar batatas Russet Burbank, de Idaho, ao redor do mundo.
Por outro lado, também tornou as montadoras, grandes varejistas, casas de moda e comerciantes de produtos eletrônicos muito mais vulneráveis, até aos menores contratempos: basta ver as dezenas de bilhões de dólares em comércio retidos quando um único navio de carga, o Ever Given, encalhou no Canal de Suez por seis dias em 2021. Ou a ruptura na cadeia de suprimentos ocorrida quando a pandemia da covid-19 deixou os navios de contêineres engarrafados em portos da Ásia e dos EUA.
Talvez tenham sido prenúncios sobre a facilidade com que os oceanos poderiam ficar fechados.
Desde que os houthis tomaram o Galaxy Leader, um navio de transporte de carros de propriedade japonesa, em novembro, as tarifas de frete de Xangai a Gênova quadruplicaram. No mundo, o custo médio de transporte de um contêiner de 40 pés aumentou 2,7 vezes nesse período, para US$ 3.964, segundo a consultoria Drewry, de Londres. Fabricantes como Tesla e Volvo tiveram que suspender a produção de carros em fábricas na Alemanha e na Bélgica por falta de peças.
Confortos como que roupas os europeus usarão na primavera – ou os novos telefones – estão em risco. Mas também começam a surgir impactos mais profundos: “A crise também vem repercutindo nos preços internacionais dos alimentos”, alertou Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
As marinhas dos EUA e do Reino Unido intervieram para tentar garantir a passagem segura de navios pelo Canal de Suez, seja qual for sua bandeira ou destino. A ocasião anterior em que os EUA haviam proporcionado uma segurança dessa magnitude para navios não americanos, a ameaça eram os submarinos alemães e torpedos japoneses, segundo Salvatore Mercogliano, presidente do Departamento de História, Justiça Criminal e Política da Universidade Campbell, na Carolina do Norte.
O problema é que os navios com bandeiras dos EUA ou aliados, são alvos para os rebeldes houthis. No fim de janeiro, a empresa de navegação Maersk comunicou que deixaria de enviar navios com bandeira dos EUA pelo Mar Vermelho.
Isso significa que a passagem pelo Mar Vermelho sob proteção dos EUA está sendo cada vez mais usada por navios com petróleo russo ou que possuem bandeira chinesa. Há duas semanas, um líder dos houthis disse que os navios chineses e russos seriam poupados. Moscou e Pequim se abstiveram de se envolver militarmente, emergindo como cômodos beneficiários de uma nova era em que a origem de um navio faz diferença.
Se não a situação com os houthis continuar, um ator beligerante terá estabelecido o precedente de escolher quais navios podem cruzar a passagem oceânica: “Outros podem tomar isso como um modelo a ser seguido no futuro”, disse Christian Bueger, professor de relações internacionais da Universidade de Copenhague.
A França enviou sua Marinha para escoltar navios de carga franceses pelo Mar Vermelho – relembrando a era dos piratas do Caribe, quando galeões espanhóis acompanhavam frotas carregadas de ouro pelo Atlântico. No fim de janeiro, a Índia enviou um destroier com mísseis guiados para ajudar 22 marinheiros indianos a apagar um incêndio em um petroleiro atingido por um míssil. Outros navios graneleiros e de carga estão simplesmente desligando seus aparelhos transponder ao passar.
Mesmo que esses navios consigam evitar mísseis dos houthis, eles não podem se esconder das firmas de seguro. O custo do seguro contra guerra no Mar Vermelho, antes uma pequena porcentagem do valor total coberto, disparou para 1%, uma diferença que muitas transportadoras consideram proibitiva. A alternativa, fazer 16 mil km a mais rodeando a África gasta tanto combustível que os navios de carga precisam pagar altos impostos climáticos na chegada à Europa e correm o risco de receber notas “vermelhas” no índice de relatório de carbono da Organização Marítima Internacional (OMI).
Por sua vez, o seguro para navegar pelo Mar Negro, a principal rota de exportação de grande parte dos grãos mundiais, aumentou tanto que o governo Ucrânia, já com problemas financeiros, tem de subsidiar as apólices de seguro de navios estrangeiros. O caos na região fez o transporte de grãos passar a depender de uma combinação instável de acordos transitórios entre Moscou e Kiev.
A Rússia já construiu seis bases navais no Ártico para reforçar outra vantagem: o derretimento do gelo vem abrindo uma nova rota marítima pelo topo do mundo, um atalho da Europa a China que Moscou pode facilmente fechar a navios associados a qualquer país que forneça armas à Ucrânia.
“Nós realmente temos que pensar na liberdade de navegação e na conexão entre isso e o comércio global”, disse Tobias Billström, ministro do Exterior sueco.
“Enquanto nação dependente do comércio global, acreditamos que o comércio global é o rumo a seguir”, disse. “Sem o comércio global e a possibilidade de manter os benefícios do comércio global, este mundo será muito mais difícil.”
Fonte: Valor Econômico
Clique aqui para ler o texto original: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2024/02/07/pilar-do-comercio-internacional-o-direito-a-navegacao-esta-sob-ataque.ghtml
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